A razão, um suposto apanágio humano.

Estamos passando por um momento na história humana sem precedentes. Ainda não entendemos como lidar com o desequilíbrio relativo a contínua elevação e descontrole da espécie. Aprendemos a ampliar os meios que prolongam e garentem a sobrevivência, nos deixando viver mais, reproduzir mais, reduzindo inclusive a mortalidade infantil e senil, melhorando a medicina, a indústria farmacêutica, ambas interessadas em salvaguardar a saúde dos seus comuns (se isso implica em dependências química e psíquicas, não importa), entre tantas outras facilitações tecnológicas que ampliam nossa capacidade existencial. A lista é grande e não caberia aqui, nesse resumo do caos. Logo, com tanta capacidade de existência ocorrendo no mundo tal qual conhecemos, um avassalador e incontrolável crescimento da humanidade, do animal humano, da espécie de racionalidade duvidosa, prossegue como inevitável descontrole pandêmico humano. Tóxica ao extremo quando as colônias bípedes com telencéfalo altamente desenvolvido crescem desmedidamente. Remediável sim, porém longe da cura a exemplo das espécies virais, a nossa é altamente adaptável e se reproduz rapidamente seja no lixo, seja no luxo. Sim, não sabemos como lidar com a vida, não compreendemos o óbvio que tanto observamos nas espécies que sucumbem quando a hiperpopulação de seres da mesma espécie ocupam o mesmo espaço. Os efeitos de uma moralidade mítica e acrítica, interessada apenas em seguidores controlados por uma fé cega, numa ideologia qualquer com narrativas “idiotizantes”, adoece aquilo que acreditamos ser o nosso melhor: nossa capacidade altruísta estúpida e egocêntrica ao crer que toda realidade é exclusiva humana, de uma espécie que pensa ser a escolhida e privilegiada dentro de um universo de dimensão imensurável e desconhecida. Sim, humanos esqueceram o básico dos básicos, a obviedade de que todo excesso compromete a homeostase existencial. Mas, dirão que tudo que foi exposto aqui são palavras pessimistas de quem não pode prová-las. Não deixa de ser verdade, não se pode provar mesmo, já que o futuro é sempre um lugar que ainda não existe. Talvez você, quem me lê, negue ao sentir desconfortos por entender que faz parte dessa colônia tóxica. Por achar que faz diferente de todos, por acreditar que está consciente das suas atitudes e que jamais colaboraria para o caos e sim para a salvação das vidas do mundo. Enfim, em resumo, não sabemos mais como lidar com nossa espécie que, velozmente devora a si mesma. Certamente Thomas Hobbes não tinha ideia da sabedoria de suas observações afirmando que: “o homem é o lobo do homem”. Se ainda assim há dúvida sobre tal afirmativa, fica claro que estamos todos no caminho certo para dar errado.

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Facere sensum

Muito bom remexer no baú das memórias. Naqueles escritos no papel, e-mails ou nas redes sociais. Textos, em geral, são transcrições das percepções e sentimentos que nos preenchem no exato momento que os desenhamos. Por essa razão, entendo que cada texto, seja uma carta de amor1, seja um simples recado ou qualquer outra intenção de comunicação, tem um desejo contextualizado, sem perder de vista a vontade de expressão, a motivação e o momento. Para amigos, parentes, relacionamentos amorosos ou comerciais, dos negócios e por aí a fora, de uma forma ou de outra, comunicam intenções, desejos, saberes e tudo o que conhecemos como informação. Portanto, “desenhar” textos intenciona expressar algo. Seja qual for o interesse o texto transmite para o outro (receptor) e ao mesmo tempo para si (emissor), ideias. Escrever é, muitas vezes, uma “divã” onde somos paciente e terapeuta. É o momento que nos obriga a pensar mais sobre tudo o que queremos realmente expressar e onde a criatividade e o bom senso emergem (ou não). Abro parênteses: tenho a impressão que em um passado não distante éramos mais zelosos quando ainda escrevíamos “de punho”. Fecho parênteses.

Gerações como a deste autor foram educadas com o rigor das formalidades onde a palavra escrita, para ser bem dita e interpretada carecia cuidados, de conhecimento linguístico e também da atenção com o receptor. Assim, escrever exigia estudo, prática, leitura e conhecimento, independente do conteúdo a ser elaborado. Porém, para as gerações que nasceram e nascem juntamente com a revolução da comunicação e o advento da informação eletrônica, tais exigências perderam-se entre urgências, modismos e a flexibilização da linguagem informal. Para não dizermos livre e descuidada. As debilidades presentes tanto na escrita (transmissor) quanto na leitura (receptor) multiplicam-se exponencialmente. Entretanto, percebe-se que este novo jeito de comunicar não se resume, exclusivamente, ao emprego das TICs (tecnologias da informação e comunicação), que substituíram com facilidade os textos tantas vezes escritos e reescritos com a “pena”, com o lápis ou a caneta. Mas, em tempos de globalização da informação, escorregões, desatenção e até um certo descaso com a escrita e a leitura estão mais e mais frequentes. Uma certa “preguiça” aliada a “urgência” parecem justificar tal descuido. “Pontos e as vírgulas” esquecidos pelo imediatismo, pelo “quanto antes melhor”, por uma pressa desmedida do “para ontem”. Nesse mesmo cenário e sentido outro inimigo da boa escrita emerge dos consultórios psiquiátricos e psicoanalíticos com um sem número de novos distúrbios de comportamento. Comportamentos que até então eram desconhecidos da educação formal e informal. Pais de uma nova geração de emissores e receptores parecem se apoiar em novas justificativas psicológicas para aceitar e se conformar com o retrocesso e o descaso pelas formalidades da educação alfabetizadora, provocando ruídos disruptivos da comunicação e informação em uma escala sem precedentes.

Este legível descuidado com a escrita não pondera consequências e crê ser suficiente para a realidade que se apresenta. Parece desconsiderar que os textos, escritos de qualquer jeito, estão a mercê de uma análise “plurinterpretativa” dos receptores mergulhados em carências, das múltiplas perspectivas do outro, livre dos efeitos do humor e do tempo do outro, do julgamento e da experiência do outro e de tantas outras variáveis dos outros. Quanto mais desatenta ou descuidada for a escrita, contará, invariavelmente, com a mesma distraída e rasa interpretação alheia. Isso, por si só, nos apresenta o grande desafio do olhar educador para a escrita e interpretação em tempos de fast-tudo2. Onde abreviações descuidadas, mensagens prontas, (des)apropriação de pensamentos, falta de contextualização e até mesmo ausência da boa vontade e gentileza, fazem a comunicação humana escrita ir de mal a pior. Não falamos de fakes news ou autorias duvidosas, mas de descuidos gramaticais e ortográficos, da desatenção na escolha vocabular e de tantos outros fatores aliados as invencionices populares da escrita e o desapego da cultura literária. Estimulamos e disseminamos, sem nos darmos conta, um limitado entendimento entre transmissores e receptores.

Apropriando-me do termo homeostase, recentemente cunhado como homeodinâmica, oriundo das ciências biológicas e que dá significado a condição de relativa estabilidade da qual o organismo necessita para realizar suas funções de forma adequada para o equilíbrio do corpo, de modo a manter uma condição estável mediante múltiplos ajustes dinâmicos, controlados por mecanismos de regulação inter-relacionados, emprego aqui o que podemos nominar de “homeostase social”. Com a intenção de pensarmos a comunicação escrita, enquanto importante objeto de reflexão e sua potencial contribuição para o (des)equilíbrio das dinâmicas relações humanas em sociedade, metaforicamente como um organismo que busca incessante regulação e equilíbrio. Partindo deste entendimento podemos refletir sobre a importância da escrita, tão necessária à comunicação em seus múltiplos canais e relações cotidianas. Ter em conta que o mal dizer contribui para um possível e provável colapso da homeostase social por conta do descaso.

Lembro aqui um dito popular cuja autoria desconheço: há três coisas que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida. Ponderemos a escrita para que ela, antes de ser lançada como na frase acima, tenha maior precisão possível e possa, antes de ser atirada, readequada ao pretenso alvo. Lembrando ainda que, a pressa e a emoção, por vezes, ofuscam a qualidade e a razão dos escritos. Valendo o mesmo para a leitura. Importantes temas para outras reflexões.

1 Quando falamos de mensagens de amor, fazemos referência a todas as formas e não necessariamente só aquela do amor poético, pincelado com adjetivos hiperbólicos. O amor em todas suas formas, da mais altruísta, aquela gratuita que não exige nada em troca ao mais egoísta, que reconhece em si mesmo suas próprias incertezas e inseguranças.

2 Termo empregado pelo autor para definir o movimento econômico e social que assola a humanidade a medida que a economia exige maior disponibilidade de tempo e maior produção.

Infinito particular

Morrerei sem ter consciência de mim mesmo. Já não tenho mais dúvida sobre isso. Quando penso que sei mais sobre mim, vem a vida e me apresenta um novo Eu. Então, que fazer além de seguir resiliente, de viver da melhor forma que for possível? Afinal de contas, o único jeito que conheço para ser feliz é estando vivo.

Entretando, sei que estou mais infantilmente maduro e adolescentemente homem. Em um mix de pessoas que me habitam e, volta e meia, vão, alguns de mim me abandonam. São tantos Eus em um único Eu que poderiam escrever incontáveis histórias e estórias sobre Um que vive Muitos e vice-versa.

Não amigos leitores, não enlouqueci, ainda. A vida não me permitiu o luxo da loucura, o de “Ser” sem se preocupar com nada. Mas ela, a vida, culpa nenhuma tem, embora insista em colocá-la no banco dos réus. Parece que escrevo insanidades, não é mesmo? Não amigos, não são. Eclodem a todo instante, míseras mini lucubrações que orbitam meu mundo. Um punhado de constatações que, como a Lua, ora se faz lindamente presente, ora ninguém percebe sua silenciosa existência.

Toda vez que reflito sobre o que sou no mundo e como o mundo me faz ser o que sou, concluo que não passo da soma de uma porção de incertezas, de dúvidas que só encontrarão respostas mutantes e finitas até onde meu Eu dure.




Lucubrações sobre uma vida de felicidade ou a felicidade de uma vida.

Há quem, durante a vida, nesse efêmero espaço de tempo, gaste-o procurando a felicidade. Como se houvesse um segredo a ser desvelado, como se a felicidade fosse algo alcançável através de técnicas que inventamos, de saberes que supomos, de ações que realizamos e por aí adiante. Mas não há segredo, nem técnica e ação específica que alcance a tão desejada plenitude. A felicidade e seu contrário são, simplesmente, a sorte de existir. Insatisfeitos ou não, a vida estará lá do mesmo jeito e o tempo seguindo sua marcha sem dar a menor importância para a angústia dos vivos. Independente do estado físico e emocional (orgânico) da existência. Mesmo que outras vidas pareçam ser mais felizes, lembre-se, são vidas sujeitas ao mesmo tempo e ao mesmo fim. A missão é aproveitarmos a vida. Tendo em mente que as escolhas trarão incontáveis contradições e que esse movimento cheio de dualidades, contém toda a sorte de ser quem somos.

Quando alguém me revela saber o segredo da felicidade, ouço com atenção. Entendo que estará sendo feliz quem revela tal segredo e quem está ouvindo. No caso, eu. Ambos estarão felizes não por conta do segredo em si, mas pela sorte de possuírem a vida e poder conviver da forma que for. Afinal, sem a sorte de existirmos haveria felicidade?

(batschauer)

Ser feliz, eis a questão.

Uma seara pantanosa falar sobre felicidade. Entendo ser ainda mais complexo tratar esse assunto como algo que procuramos ou precisamos encontrar. Temo, também, pelo cientificismo da felicidade, seus mecanismos, ações e reflexos. Certamente, seguimos evoluindo muito em relação a compreensão dos estados de felicidade. Psicologicamente e fisiologicamente falando, alcançamos muitas respostas sobre como operam tais mecanismos, quais regiões do cérebro são responsáveis por sensações de prazer, dor, alegria, tristeza, etc. Da mesma forma, quais substâncias químicas agem em nosso sistema nervoso e no restante corpóreo. Enfim, seguimos mapeamentos e apostas, analisando comportamentos e achismos, ciência e cultura popular e por aí à fora. De muitas formas pensamos a felicidade. Variando entre um lugar alcançável, uma necessidade imprescindível, um desejo a ser materializado, um caminho a ser perseguido, um estado a ser vivido, um objetivo de vida, entre tantas outras conjecturas. São Muitas. Não é um tema novo para a humanidade e parece estar longe de ser esgotado. Pesquisas, opiniões, vivências e experiências se multiplicam e se dividem. Elevadas a uma potência que tende ao infinito, aparentemente inesgotável, misturam teoria e prática. Procuram respostas e potenciais formas de evoluirmos na direção de um “estado elevado”, de um “ser e estar” feliz, da plenitude e da autonomia.

A felicidade, em termos filosóficos, pode alcançar múltiplos conceitos, variando escolas e contextos, considerando interrogações do tipoquando”, “como”, “onde”, “quem”, “para quê” e “por quê”. Observada e comentada a mais de dois mil anos, por inúmeros pensadores e estudiosos ligados as grandes áreas humanas e biológicas, em diferentes contextos e épocas, ora se apropriando da ciência como fio condutor para encontrar respostas, ora expressando opiniões pessoais que partem do que a vida apresenta. Poderia estender este tema por páginas e páginas. Mas não é a intenção nesse momento. Trago uma pequena reflexão, sem objetivar críticas ou construir teorias. Apenas, pensar sobre. Também não espero que todos tenham a mesma perspectiva, não seria construtivo. Menos ainda, criticar o trabalho dos que estudam e se dedicam a oferecer uma reflexão para que seus orientandos, pacientes, amigos, sejam lá quais forem as relações que tematizam a felicidade, olhem para outras perspectivas.

Navegamos nesse mar de ideologias onde mercadores de todos os cantos do planeta ofertam seus mapas e seus segredos para alcançar a tão almejada satisfação de viver. Hoje, um universo de profissionais operam com a felicidade: psicólogos, sociólogos, filósofos, religiosos, míticos, médicos, coaches, e segue o menu de opções. Enfim, há um oceano de alternativas que oferecem meios para estimularmos a autoestima, a positividade, a plenitude, a harmonia consigo mesmo e com o mundo a nossa volta. Certamente existem conselhos e aconselhadores que podem guiar os desorientados, aqueles que supostamente não alcançam tal estado. Pelo menos, por um tempo. Vejo com bons olhos esse movimento humano. Mesmo não entendendo ser a felicidade um produto a ser comercializado ou um objetivo a ser alcançado.

Todo esse movimento em torno da felicidade levanta questões como: afinal, qual é a essência da felicidade? Qual conceito pode dar conta desse estado aparentemente tão desejado? Podemos mesmo definir o que é felicidade? Está claro para nós o significado do seu contrário, o da infelicidade? Logo, se estamos ou somos tristes é porque sabemos o que é estar ou ser alegre. Se estamos ou somos satisfeitos é porque sabemos o que é ser e estar insatisfeitos. Se estamos ou somos angustiados, obviamente sabemos o que é estar ou ser tranquilos. Enfim, se estamos infelizes, pressupomos saber o quê é ser e estar feliz. Assim, temos uma dualidade, assinalando a existência de dois fenômenos diferentes numa mesma pessoa ou num mesmo estado de coisas. O sim e o não, a vida e a morte, os contrários necessários para que possamos compreender o mundo exatamente como ele se apresenta. Podemos perguntar a partir disso: evoluiríamos se não houvessem dificuldades a serem superadas, se as contradições existenciais não se apresentassem no decorrer da vida? Como poderíamos desejar a felicidade sem nunca termos experimentado o oposto? Como elevaríamos nosso conhecimento sem a presença do desconhecido?

A felicidade, na divã, diz que sua contrária, a infelicidade não é uma vilã, embora seja encarada por nós como tal. Diz ainda que nem o estresse é vilão da humanidade, mesmo que estudos indiquem que os seres humanos estão cada vez mais estressados. Nem a dor e nem o medo são sensações somente negativas, que precisam ou possam ser evitadas sempre. Diz um velho ditado: “se não aprendemos pelo amor, aprendemos pela dor”. Sem os opostos, basicamente, não conheceríamos a vida tal qual conhecemos. E, pela lógica, não existiríamos no universo tal qual se apresenta ao nosso alcance. Da mesma forma, para que o bem exista, o mal também existirá. Entretanto, quando nos referimos a infelicidade, demonizamos esse estado como se fosse um mal sem precedentes, porém curável, remediável ao longo da vida. Mas afinal, quanto a sua essência, o que é felicidade? Qual o conceito de felicidade?

Li, não me recordo exatamente onde, que a sorte de estarmos vivos é a própria felicidade. Um pensamento poético que não deixa de estar carregado de sentido. Afinal, o contrário também se aplica, ou seja, não estaríamos ou seríamos tristes se não estivéssemos vivos. Notem que esse pensamento ganha força quando nos apresenta aquilo que é essencial para definirmos o mundo a nossa volta, para decidirmos o que fazermos nele e com ele. Sem afirmar ou querer apresentar uma teoria que defina a felicidade, que traga um conceito formal e englobe todas as possibilidades sobre essa sensação de “ser e estar” feliz no mundo, ou sugerir uma receita a ser seguida, arrisco um palpite:

A felicidade é imprecisa. Não podemos afirmar que sentimos felicidade igual ao meu semelhante. Da mesma maneira, não podemos afirmar o mesmo sobre a infelicidade. Muito embora, podemos afirmar que todos os opostos estão ligados, tanto em nossa realidade objetiva, como em nossa subjetividade imaginativa. Mas, sobre essas sensações opostas que denominamos de felicidade e infelicidade, penso que são, em termos existenciais, uma espécie de “empurrãozinho” natural para seguirmos interessados no amanhã. Um combustível para esse movimento paradoxal que nos faz alcançar significados e, consequentemente, traduz o que entendemos da própria vida.Ser e estar” feliz é “ser e estar” infeliz ao mesmo tempo. Um sustenta a existência do outro. Assim como morte e vida precisam coexistir num estado ou qualidade de duas ações ligadas entre si por uma recíproca dependência. Ambas, realizam as mesmas finalidades pelo auxílio mútuo ou coadjuvação recíproca. Interdependência ou causalidade, não sabemos qual delas é primeira, apenas que ambas necessitam coexistir para nos dar sentido.

Com esse olhar, podemos pensar que a felicidade não é, necessariamente, um estado de prazer, como um objetivo alcançável, como uma alternativa de vida ou uma escolha para o bem-estar. Mas, um estado regulatório do autoconhecimento, onde, através das múltiplas sensações, podemos compreender, sobretudo, os efeitos da realidade que nos cerca durante o percurso existencial. Em outras palavras, não escolhemos ser e estar felizes. Simplesmente somos e estamos felizes e infelizes o tempo todo ao longo desse estágio chamado vida.

(batschauer, 2019)

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Foto: Marcelo Pasqualin Batschauer. Dublin, IRL, 2019

am…

…o tempo corrige meus erros,
leva minhas partes, move meu eu

…o tempo vai e não volta, feito pedra lançada,
feito dedo na cara, segue silencioso

…o tempo está sempre a espreita,
aguarda meus descuidos, ensina novas lições

…mas ele não me engana não, há muito bricamos juntos,
de coisas diferentes

…o tempo, de pega pega, enquanto eu,
de esconde esconde

….ele sempre me pega, sempre me acha,
sempre ganha, mas

…enquanto a brincadeira durar, eu aproveito.

(batschauer)

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(baile átha Cliath) Dublin – Foto: Marcelo Pasqualin Batschauer 

Ruídos

sonídos
invisíveis e quase inaudíveis
reverberando pelos cantos da mente

ecoam

signos indecifráveis
mergulhados em mim
nú escuro

meios sentidos

tateando contradições
todas minhas
onde sinto

que passam

no breve entre-luz
de um demorado piscar de olhos
onde reflito

no tempo

que alarido é esse?
parece me julgar
em seu mudo senso

que não para

de me apontar
dedos em riste
a dizer-me

o que sou

afogando seus conceitos
na doce saliva
do sonhado beijo

que é só meu

sim e não
outra contradição
inerte lamento

esse sopro sem direção

mais e mais de mim mesmo
sufoca
todo desejo 

 faz me perder

 

 

Uma carta para a loucura!

No betume cravejado de pequenos pontos cintilantes, feito quebra-cabeças de encaixes impossíveis, habitam estrelas, peças espalhadas no infinito tabuleiro de um universo sem fim. Pois é, aqui estamos, existindo entre a ordem e o caos, entre a dúvida e a certeza, entremeados por ambiguidades loucamente necessárias.

E, se isso que lhe digo agora parecer mesmo loucura, acredite, é verdade. Afinal, dizer-se sã não passa de ilusória criação nossa, de bicho homem. E é nessa loucura, nesse estado tão imcompreendido, que as nossas verdades ululantes não são garantia alguma. Sem silogismos, a vida é uma loucura, uma verdade e vice-versa.

Amiga, ri disso e desse homem, sonhador que sou. Da minha crença de que um dia visitarei todas estrelas que enfeitam e iluminam o universo escuro. Ri de mim mesmo, do romântico altruísta, do sovina dos “nãos” que se acumulam n’algum canto dentro de mim. Ri do amor que se apresentou de tantas formas, tão puras, tão lindas e doloridas. Ri das vezes que disse “eu te amo” e que no fundo dizia: você me pertence. Ri do meu egoismo inocente e da desgraça que volta e meia mostra os dentes. Ri das minhas e das suas contradições sem fim, que passam, que mudam e silenciam no passado.

Ora, para você que me lê, digo que ri, mas também que chorei, não vou mentir. As vezes de tanto rir, outras o porquê nem sei. Dos comerciais de margarina e daquele adeus mudo para nunca mais. Daquela ideia de amor infinito que acabou, do incondicional sob condições. Das paixões não correspondidas, amargas e arrependidas. Ah, minha amiga! Chorei também do arrependimento, dessa ferida d’alma que não cicatriza. Também do estado de espírito que nunca alcancei, por ele chorei. Entremeado na multidão e na solidão chorei, nesses lugares onde me senti tão pouco. Chorei, inclusive, ouvindo a nossa canção, aquela que parecia nos conhecer tanto. Na diária paisagem repetidamente passante e nas leituras das mensagens guardadas, nos versos e nos inversos chorei rindo e ri chorando.

Mas, preciso te dizer que tudo daqui observo, desse ponto impreciso no universo onde vivo, choro e sorrio. E, costumeiramente, dou-me conta que meu olhar não me encontra. Desatento espiando tantos outros sós, nos seus mundos de faz de conta, são como espelhos de mim mesmo. Então, é aí que minha subjetividade existencial se apresenta:
– Prazer, me chamo Loucura e você?
Minha objetividade responde:
– Quanta coincidência meu Xará!

(batschauer)

Esta carta foi escrita a pedido de uma pessoa amiga, cujo contato nunca transcendeu a blogosfera, mas que por sua riqueza, naturalidade e carinho gratuitos, alcança um patamar de admiração e respeito mútuo tão raros em tempos de amores líquidos. Uma espécie de incodicionalidade que só nos engrandece e nos faz querer superar mais e mais as contradições da vida. Obrigado minha querida e admirável amiga Elaine Reis.

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Someone like us… London, UK Foto: Marcelo Pasqualin Btaschauer

 

Pensamentos distantes

“Lembre que nesta vida, tão sensivelmente efêmera,  somos como gotas de chuva regando o solo seco que tudo absorve e faz brotar. Flocos de neve na terra quente que tudo evapora. Somos assim. Sempre um fim onde tudo recomeça”.
(batschauer)

Somewhere on Scotland

Somewhere on Scotland

A vida começa aos…

Quem nunca ouviu uma frase assim?
Dias a trás, mais uma vez, numa roda de conversas, esta pérola da sabedoria humana emerge:

“A vida começa aos quarenta anos”!

Deixei a roda e me coloquei a pensar se isso era coerente de fato ou apenas uma forma de nos conformarmos com a idade que avança, com as mudanças físicas e psicológicas que emergem nesse percurso. Sim, a vida pode muito bem começar aos quarenta anos de idade, por que não? Afinal, podemos partir da ideia de que ao chegarmos aos quarenta a grande maioria das pessoas já trilhou muitos caminhos, se experimentou em muitas coisas e, supostamente, alcançou a maturidade em distintas áreas da vida humana, como por exemplo: o trabalho, as relações sociais, os sentimentos, a maternidade (paternidade), a própria sexualidade e por aí a fora. Aos quarenta anos podemos dizer que alcançamos a “mea idade“, ou seja, a metade do caminho até o fim da vida. Faz sentido, não? Autores consagrados afirmaram esse começo tardio em suas obras, como na importante obra de uma dos mais proeminentes escritores russos, O idiota:

“E quanto à idade, também, o general estava no que se chama a flor da vida, com seus 56 anos, não mais; e nós bem sabemos que isso é que é a verdadeira flor da existência do homem, a idade em que realmente a vida começa.” (FIÓDOR DOSTOIÉVSKI, 2014, p.62 )

Mas, como não me contento com pontos finais, com verdades absolutas, segui refletindo sobre esse pensamento popular, tão dissiminado e muitas vezes levado a sério em demasia. Influenciando, inclusive, o comportamento das pessoas de tal forma que parece apagar tudo o que fora vivido até então. Ora, não se trata aqui, nessa reflexão, pensarmos em termos exclusivamente biológicos, evidentemente. Por razão lógica e economia da falácia, pularemos essa realidade objetiva da qual temos ciência de que a nossa vida biológica começa lá, no primeiro momento dentro de uma bolsa escrotal até completarmos a árdua travessia para alcançar o útero donde fecundaremos o óvulo e, tudo como conhecemos toma forma, uma que podemos chamar de vida, de indivíduo, como quisermos. Mas, como disse, não é sobre essa vida que o dito popular trata, mas uma de auto satisfação, de encontro consigo mesmo, de escolhas próprias, de reconhecer em si mesmo aspectos que, aparentemente, não eram valorizados até aquele momento. Também não tenho intenção de discutir as subjetividades do pensamento humano quanto as questões relacionadas a possíveis vidas passadas, a reencarnações ou coisas metafísicas que fazem parte das crenças humanas e que para muitos satisfazem e explicam os porquês da nossa existência. Lembrando que, refletir não é estabelecer nenhuma verdade, nenhum conhecimento absoluto, mas sim, um exercício do livre pensar sobre as coisas, inclusive aquelas que parecem banais como a ideia de que a vida possa mesmo começar num determinado momento cronológico da existência individual.

Também não se trata de negar que a maturidade nos faz enxergar valores tão distintos daqueles da infância, da juventude ou da idade adulta. Mas sim, lembrar que todas essas fases são determinantes na formação do ser até o momento em que este se encontra pensado que a vida começa numa idade “x”. Estabelecendo, ideologicamente, que esta possa ter início num dado momento posterior a todos os fatos que o constituiram até alí, que o trouxeram a esse lugar onde se sente seguro para afirmar que a vida têm seu início numa idade onde olhamos para trás e comparamos nossas experiências, negando ou admitindo que foram etapas onde não compreendiamos adequadamente seus valores. Tenho a impressão, também, que cremos nisso pelo fato de consideramos que muitas das nossas decisões, escolhas e ações foram realizadas sem termos consciência dos seus significados, nos levando a acreditar que doravante, que a partir desse momento no qual afirmamos que a vida começa na idade “x”, estamos plenamente conscientes das próprias crenças, do quê dizemos e fazemos. Ao refletir sobre, não me parece justo afirmarmos isso. Mergulho nessa ideia e me obrigo a buscar nas próprias lembranças os significados de tantos momentos.

Sim, uma forma de repensar a vida e avaliar o que foi bom e o quê não. De compreender os excessos e carências que me edificaram. Procurar entender escolhas as quais repetiria ou mudaria e, também, de pensar se em cada momento experenciado não foi, da mesma forma, um começo necessário nesse processo inquietante e mutável na construção individual(moral e ética) até o meu agora. É nesse instante, onde afirmamos, de forma muitas vezes categórica, que a vida começa na idade “x” onde muitos dirão: sim, por tudo isso é que podemos afirmar que a vida começa nessa idade.

Eis que me encontro nesta intensão reflexiva sobre este dito. Avaliando este pensamento relacionado a ideia de felicidade de cada ser humano. De sentir a plenitude das escolhas como algo que está super consciente desta idade para frente. De que outros começos não existirão depois dos quarenta ou cinquenta anos de idade. Que a sensação enebriante de felicidade, uma vez supostamente alcançada, invoca em nós a certeza da plenitude, do verdadeiro começo, da satisfação consigo mesmo e com as realizações que fundamentam um recomeço cronológicamente tardio. Ideia essa que nos dá indícios de que desta idade em diante seremos totalmente conscientes das nossas atitudes, das nossas escolhas. As armadilhas da inocente inexperiência da idade antecessora não mais se repetirão. Foi pensando sobre isso, sobre essa possível “idade do começo da vida”, onde acreditamos ter alcançado a sabedoria necessária para estabelecermos a plenitude das satisfações e anseios, que deparo com a contradição desta crença tão comum, desta verdade popular tão inocentemente difundida. Não uma contradição que nega a chegada da maturidade, mas uma que nos apresenta que a satisfação com a vida não está, e nem pode estar, atrelada a um tempo cronológico específico. Seria negar que tudo o que antecedeu até esse momento não foi, da mesma forma, um começo.

Não seria o mundo das ideias que Platão nos apresentou o lugar onde alimentamos os “começos” da vida? Que não dependem de uma idade cronológica, tornando-se assim incessantes até o fim da própria existência?

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